Entrevista: JOSÉ ARMÊNIO DE BRITO CRUZ "Os brasileiros estão construindo uma cultura urbana" por Valério Fabris

       Até a década de 1950, 64% dos brasileiros viviam no meio agropastoril.  Isso quer dizer que a grande maioria da população ainda está aprendendo a construir e a exercer as regras básicas necessárias a um convívio nas cidades que, subitamente, nasceram ou se expandiram muito além de seus antigos limites.  “O Brasil é de recente urbanização.  Nossa tradição é de um país rural”.   É o que afirma José Armênio de Brito Cruz, presidente do departamento paulista do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB).
            Ele concedeu à Bares e Restaurantes uma entrevista em que aponta a necessidade de as cidades brasileiras se tornarem mais compactas, como é Paris ou Nova York, e menos espalhadas.  Só assim as cidades responderão ao verdadeiro caráter nacional, que é o das pessoas de diferentes condições econômicas, raças, idades e gêneros viverem próximas umas das outras.  O afastamento, segundo o arquiteto, gera segregação, humilhação e violência.
           Cidades compactas requerem, necessariamente, áreas centrais revitalizadas.  Isso significa aproximar os moradores de seus locais de trabalho e prestadores de serviços, reduzir os custos de transportes, utilizar ao máximo as infraestruturas já existentes, tornar mais próximos os diferentes.   “Há pesquisas mundiais apontando que uma economia se desenvolve mais onde o pensamento é livre, onde existe o convívio entre os diferentes”.
           Formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, José Armênio de Brito Cruz é fundador do escritório Piratininga.  E autor dos projetos de reforma da biblioteca Mário de Andrade e do conjunto Comandante Taylor, em Heliópolis, na região sudeste da cidade de São Paulo.  O arquiteto considera maléfica ao desenvolvimento urbano a privatização do espaço público, por meio de ruas fechadas, shopping centers e condomínios. 


B&R - É de nosso costume criticar o que consideramos errado nas nossas cidades como se esses erros viessem de um ente abstrato, longínquo e indiferente à nossa sorte.
José Armênio -  A cidade é fruto dos nossos desejos e das ações da sociedade.  É criada por nós, o conjunto da população.  Não somos vítimas dela.  A cidade talvez seja uma das obras mais incríveis já inventadas pela civilização. Basta a gente pensar como ela funciona.  Luz, instalações hidráulicas, comunicação, transporte.  Mesmo com as deficiências, é incrível que funcione esse engenho.  O Brasil é de recente urbanização.  Nossa tradição é de um país rural.  Se alguns países têm uma história urbana de séculos, nós temos apenas de décadas, desde quando maioria da população passou a morar em cidades (Até 1950, viviam no campo 64% dos brasileiros. Em 2010, essa proporção estava em 16%).  Nossa economia vem se transformando em uma economia urbana, de serviços, cada vez mais de serviços.  Morar em cidade requer que se aprenda que ela é resultado das ações das pessoas.  Assim como, nos prédios em que moramos, a gente aprende que temos de dividir um elevador e não fazer barulho a partir de determinada hora, nas cidades também temos de praticar regras: como usar uma praça, como fazer uma calçada, como transformar uma região que está em decadência.   Isso é o amadurecimento da cultura urbana.  A partir de 1982, o Brasil começou a praticar a democracia eleitoral, mas a democracia na gestão das cidades ainda está por se construir. (Em 1982 realizou-se  a primeira eleição para governadores, ainda durante o regime militar.  A primeira eleição direta para presidente ocorreu sete anos depois, em 1989).
B&R – A cidade é o território pedagógico do outro.
José Armênio – E do diferente.  Porque os vícios que se formaram nas cidades brasileiras, com os condomínios fechados, falseiam uma sociedade, como se ela fosse homogênea, como se houvesse só iguais.  Isso é uma doença.  A convivência com o diferente, na pluralidade, é extremamente saudável dos pontos de vista psicológico, social e também econômico.  Há pesquisas mundiais apontando que  a economia se desenvolve mais onde o pensamento é livre, onde existe o convívio com os diferentes.  É o que estamos conquistando.  É essa a configuração necessária ao país.  Por que motivo a habitação social tem de ser lá longe, e o condomínio do rico em outro ponto, acolá, fechado com portão? Existe o exemplo, em São Paulo, do edifício Copan, que tem apartamentos de 26 metros quadrados e de 260 metros.  E ninguém se estapeia no corredor. (O Copan, projetado por Oscar Niemeyer, está situado no centro de São Paulo, com 1.160 apartamentos em seis blocos, tendo sido construído entre 1951/66).  É a prova de que a sociedade brasileira tem um caldo de cultura favorável  ao convívio harmonioso.  Isso é a vida.  A imponderabilidade é exatamente a diferença na pluralidade que a vida apresenta pra gente; e isso é que é legal.
B&R – São Paulo, que é uma referência para o país inteiro, e que até os anos 60 tinha como um de seus símbolos o popular bairro do Bixiga, por exemplo, acabou levando outras cidades brasileiras a copiar seus condomínios, shopping centers e as ruas de lojas caras, como a rua Oscar Freire.  
José Armênio -  O país é feito de tudo, inclusive de Oscar Freire e Bixiga, que são espaços públicos. O caráter das ações que segregam não é nacional.  É um caráter estranho ao país.  O Bixiga e a Oscar Freire, sob o ponto de vista que estamos conversando, são positivos.   A questão é a privatização do espaço.  O condomínio, os shopping centers e a rua fechada são privatizações de espaços públicos.  Essas ações são antinacionais.  Porque a população brasileira é muito plural: tem ricos, pobres, brancos, negros....  Se eu disser a alguém: você vai ficar naquela quadra e não pode sair de lá.  Essa pessoa ficará brava comigo.  É a segregação que gera violência.  O condomínio fechado nega a vizinhança.  Se analisarmos historicamente, ele é quase que como o colonizado introjetando o colonizador.  É como quem diz: este não é o meu lugar. Preciso, por enquanto, me fechar aqui, vivendo aqui por um tempo e, depois, vou para “aquele” que é o meu lugar.  Mas o nosso lugar é aqui, e é aqui que temos de fazer direito, com a melhor técnica e qualidade.  Aqui é o nosso país.  A perspectiva da segregação nos é estranha. 
B&R – Quando, afinal, nós assistiremos de fato à revitalização das áreas centrais das grandes cidades brasileiras?
José Armênio – A equação, do ponto de vista jurídico e financeiro, está começando a se ajustar.  Já tivemos o Estatuto da Cidade, em 2011, que gerou planos diretores e começou a dar instrumentos para que caminhemos nessa direção.  É um processo de amadurecimento que faz parte da construção da cultura urbana.  Costumo perguntar, aqui em São Paulo, se a condição atual de nossa área central é um copo meio vazio ou meio cheio.  Em minha opinião, é um copo meio cheio, porque existe vida, compreendendo desde as pessoas que transitam pelas ruas, os que permaneceram morando no centro, as pessoas que trabalham lá.  Talvez não seja uma vida igual à das novelas da Globo, mas existe vida bem interessante, inteligente.  Há praças que começam a ser ocupadas por cafés, há – aqui perto do Instituto dos Arquitetos – uma região que se transforma em um ‘cluster’  (aglomerado ou concentração) da economia criativa.  Há a Escola da Cidade (faculdade de arquitetura e urbanismo, sem fins lucrativos, reconhecida pelo Ministério de Educação, e que oferece cursos de pós-graduação), o IAB, A Aliança Francesa, inúmeros escritórios de arquitetura, além de outros produtos culturais, como o pessoal que faz teatro. A coisa está mudando.  Então, se começar a dizer que nossos centros não estão, na verdade, vazios, mas meio cheios, podemos construir novas cidades, uma nova sociedade.    
B&R – É fundamental, para esse revigoramento das áreas centrais, que se reduzam as crescentes restrições ao comércio de rua, particularmente dos bares e restaurantes.  São costumeiras, em uma ou outra cidade, as queixas de moradores em relação ao barulho.
José Armênio – Aí voltamos exatamente ao ponto do amadurecimento da cultura urbana, um processo que está em andamento.  Isso envolve estratégias de convívio.  Como, por exemplo, um certo isolamento acústico, que existe hoje e é acessível.  Se você mora em uma rua movimentada, pode-se colocar esse isolamento nas janelas.  Em qualquer jornal, está lá o anúncio da janela antirruído. É preciso diminuir o ruído na fonte, também.  No que diz respeito ao trânsito, aqui em São Paulo temos a inspeção veicular.  São normas de convívio.  Quando começaram a chegar em São Paulo, nos anos 70, os carros poderosos, como Dodge Charger e Veraneio, não havia a norma do cinto de segurança.  Morreram muitas pessoas queridas  – amigos, primos e outros parentes – por conta de uma questão cultural. É a mesma lógica que serve para se resolver as outras pendências de convívio, dentro do amadurecimento da cultura urbana.  Veja só.  Agora, vamos pautar a bicicleta, o que significa oferecer a infraestrutura adequada, senão a meninada vai ficar muito vulnerável, porque o carro agride a bicicleta.  É preciso organizar os carros e as bicicletas.   Isso mudará o desenho das ruas e das calçadas. Aparecem as ciclovias.   Temos de viver na cidade compacta, sem barulho, sem briga.   
B&R – É aconselhável, dentro das configurações urbanas de hoje, o caminho da cidade compacta?
José Armênio – Todo mundo vai a Paris, acha legal; vai a Nova York, acha bacana.  Vamos pegar Paris, com seus prédios de seis andares, por exemplo. A densidade é de 270 habitantes por hectare, ou algo próximo.  É uma cidade densíssima, com o dobro da densidade de São Paulo, que é de 100 habitantes/ha.  Nos bairros paulistanos de residências térreas, a densidade é de 50 a 60 habitantes.   O que faz a diferença é o projeto, o desenho.  Uma densidade de 250 habitantes pode ser uma coisa agradabilíssima, como já se experimenta em várias cidades do mundo.  
B&R – As demandas são de proporções gigantescas.
José Armênio – As cidades brasileiras vivem uma situação muito delicada.  Em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, Fortaleza ou Salvador, estão fora de controle legal do administrador público 70% das áreas urbanas.  As cidades têm, por exemplo, a mesma taxa de ausência de infraestrutura sanitária.  São bombas relógios, sob o ponto de vista da saúde e da violência.  Precisamos mudar de rota.  A mudança passa pelo seguinte.  É preciso olhar para além de nós e dizer: esse que está ao meu lado também é brasileiro. Mora na mesma cidade que eu, toma a mesma água que eu tomo. Uma vez o arquiteto Paulo Mendes da Rocha afirmou, em uma entrevista, aqui em São Paulo, que não existe megawatt de pobre e megawatt de rico. O mesmo megawatt acende a lâmpada do rico e a do pobre.  
B&R – O que se tem visto, de maneira crescente é a alta classe média e os ricos morando em áreas distantes, em novos condomínios fechados.  Depois, colocam para funcionar o seu poderoso lobby, para que o poder leve a infraestrutura até eles, com ampliação de estradas, saneamento básico e até com a demarcação de reservas ambientais.  É uma competição desleal com os que não têm uma voz assim tão poderosa.
José Armênio – Bem colocado.  É uma equação um tanto quanto cruel, porque transforma terreno barato em falsa qualidade de vida,  às custas de um investimento público que vem depois. Essa é a equação que orientou muito do desenvolvimento urbano nas cidades brasileiras.  Qual é o outro lado da moeda?  São os centros das cidades, que têm infraestrutura subutilizada. Então, o movimento que você mencionou está em oposição ao que pauta cidade compacta, que é a cidade do viver juntos, da pluralidade. Existem estudos comparativos aqui em São Paulo, relativos ao custo dessa ação que você mencionou de levar a infraestrutura para o arrabalde, para a periferia, versus o custo de dar um subsídio.  Um subsídio de 40 por cento ainda é mais barato do que levar a infraestrutura até lá.  Esse condomínio que está longe é baseado no carro.  Temos de ter uma cidade estruturada para o metrô, para o ônibus, para o pé.  
B&R – Você costuma dizer que a calçada é o ponto de partida de uma cidade saudável.
José Armênio – A mobilidade urbana deve se dar, essencialmente, com o transporte público.  E o primeiro transporte público ocorre com o pé.  Qualquer um tem que andar, seja para entrar ou sair do ônibus, para entrar e sair de casa ou do escritório. Então, a calçada é o suporte fundamental para que esse veículo, o pé, se movimente com segurança.  Isso significa calçadas com pavimentação e geometria corretas.
B&R – Mas não é o que se percebe na maioria das cidades brasileiras.
José Armênio – Tem toda a razão.  Existem certos equívocos que foram se acumulando aqui no Brasil, por uma série de razões que eu posso, em outra oportunidade, detalhar.  Entre esses equívocos está o de que a responsabilidade financeira da calçada é do proprietário do imóvel, cabendo a fiscalização ao poder público.  O cidadão ajuda se transmitir ao poder público informações sobre calçadas malconservadas.  É, novamente, uma questão da cultura urbana.  Nós tivemos aqui em São Paulo a Lei Cidade Limpa, que foi uma mudança de paradigma.  Todo mundo dizia que nunca aconteceria, que jamais seria viável.  A partir de um determinado momento, a sociedade falou: chega de anúncios, de placas, de desordem visual.  Queremos olhar a nossa cidade, em vez de ficarmos olhando propagandas.  Um dia a mudança de paradigmas chegará às calçadas.  Quando a sociedade expressar isso, de modo forte, a transformação ocorrerá.  Terão sido achados, então, os meios jurídicos e financeiros para se viabilizar esse desejo. 
B&R – Você usa muito o carro?

José Armênio – Por uma circunstância de vida, estou morando a cinquenta metros de uma estação de trem.  Consigo fazer de 70% a 80% de minha movimentação com o trem e o metrô. Consigo andar de trem e de metrô, só pegando o carro quando tenho que pegar uma estrada ou para um bairro longínquo. 

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